quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Mercearias Finas 18 : Caves S. João


Trocamos os restaurantes e, em vez de leitão ou vitela à Lafões, veio chanfana, que um poeta desconhecido do séc. XVIII (Pedro de Moraes Sarmento) celebrou pela negativa: "...Carneiro ressequido, e não assado,/ (...) Isto é chanfana, insípido bocado...". E não é de carneiro, ao que dizem as tradicionais receitas da Bairrada, mas de cabra - amaciada em vinho tinto, pelo menos, de véspera. Acompanhada por batata cozida. Foi a minha estreia gastronómica de chanfana e, sinceramente, também não fiquei cliente.
Depois seguimos para S. João da Azenha, para nos encontrarmos com Luís Costa, alma e corpo das Caves S. João. HMJ conhecia-o, eu, não. Era daquelas caras que, na altura, não apareciam. Ao contrário de hoje, em que conhecemos os enólogos e os produtores antes, muitas vezes, de lhes provarmos o vinho. Luís Costa era um cavalheiro discreto, mas afável. Moderado no seu tom de voz pausado e tranquilo. Recebeu-nos muito bem e ficou contente por rever HMJ que lá tinha feito alguns almoços de Páscoa, memoráveis, em que havia leitão assado e trazido do "Vidal", espumante bruto das Caves S. João e, ao que parece, uns esplêndidos Queijos da Serra, babões.
Falamos de castas, mas Luís Costa não se descoseu: deu-me a entender que o Dão "Porta dos Cavaleiros" tinha Jaen, mas ao resto disse nada. Fiquei sem saber se tinha Alfrocheiro e/ou Rufete - castas que eu não aprecio, particularmente, ainda hoje. Por isso, na altura, eu preferia o "Terras Altas" que também era o vinho do Dão favorito do nosso falecido Presidente marinheiro Tomaz. Hoje, há melhor, onde incluo o "Porta dos Cavaleiros" (nova fase) e o "Vinha Paz".
Dessa longínqua visita, tenho ainda na Garrafeira, uma Magnum Colheita seleccionada "Porta dos Cavaleiros" de 1991. Que está a abeberar e "à espera do vento que a mereça", como dizia o Eugénio de Andrade. E muito bem.

P. S.: para HMJ, naturalmente.

Citações XLVI : La Rochefoucauld (2)


"L'hypocrisie est un hommage que le vice rend à la vertu."

A hipocrisia é uma homenagem que o vício presta à virtude.

Livro da Montaria, de D. João I, a propósito



Entre um computador moribundo (?), lentíssimo a responder nas ligações, com a provecta idade de 9 anos (pelos vistos, atingem a velhice mais cedo do que os frigoríficos) e a sua decisão de abrir, folheio, na mesa, para entreter o tempo, mas com imenso agrado, o Livro da Montaria de D. João I (impresso para a Academia de Ciências, em Coimbra, no ano de 1918), que HMJ comprou muito recentemente.
É, segundo indicação de Francisco Esteves Pereira, conforme com o manuscrito nº4352 da BNP. Não resisto, no entanto, a transcrever da Introdução os desabafos do copista do séc. XVI, anónimo, que trasladou o texto, de outro manuscrito mais antigo. E que rezam assim:
"Copiado fielmente com todas as variações orthographicas que vinham no manuscrito, com todas as phrases não acabadas e periodos inintelligiveis, sem que lhe mudasse cousa alguma: até os borrões lhe copiaria se não temesse que m'os atribuissem, e não ao manuscrito. Só lhe acrescentei alguns acentos para que ficasse menos inintelligivel. Estou certo que me imputarão muitos erros que não são meus. Ora é pena que eu não esteja lá com o manuscrito nas mãos para lhe mostrar o contrario, e lhes roçar os narizes com elle. Que bastante tive em atentar em palavra por palavra, mas até lettra por lettra. F. A. C. (?)".

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Leituras Antigas XVII : banda desenhada brasileira



Eram inúmeras as revista brasileiras de banda desenhada que, nos anos 50 do séc. passado, apareciam à venda em Portugal. Uma das primeiras terá sido o "Capitão Marvel" (uma das minhas preferidas) de que, não tendo nenhuma, li muitas de amigas mais velhas. Os temas abordados pela BD eram muito diversos: Faroeste, ficção científica, condensação e resumo de romances célebres, História, Tarzan & companhia...
A importação destas revistas era tão intensa, e possivelmente tão importante para as editoras brasileiras, que o preço vinha, muitas vezes, impresso na capa nas duas moedas: cruzeiros e escudos. Como é o caso deste "Cisco Kid", nº 7 - Ano II (1955), que se mostra na imagem. Fora editado pela "Orbis Publicações", do Rio de Janeiro.

Salão de Recusados XXVI : rigor e geometria


As Coordenadas Líricas

Desviou-se o paralelo um quase nada
e tudo escureceu:
era luz disfarçada em madrugada
a luz que me envolveu.

A geométrica forma dos meus passos
procura um mar redondo.
Levo comigo, dentro dos meus braços,
oculto, todo o mundo.

Sozinha já não vou. Apenas fujo
às negras emboscadas.
Em cada esfera desenho o meu refúgio
- as minhas coordenadas.

Fernanda Botelho (1926-2007)



A solidão é essa morte imensa
onde os mortos não cessam de viver.
E onde os vivos recolhem a tristeza
de irem morrendo sem saber a quê,
embora se perturbem. E apareça
o grande nascimento ao que já se é.

Fernando Echevarría (1929)


VI

Deixo este recado para Karl:
todo o rigor da ruptura
cria os possíveis da fala

mas por detrás das palavras
há uma prática
crepuscular

o modo de produção da noite
é literário

Vasco da Graça Moura (1942)

Revivalismo Ligeiro (?) XXVII : Lucília do Carmo

Tielman Susato (1515?-1567?) : Pavana La Battaglia

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Curiosidades 18 : almenaras


No poste anterior sobre jacarandás e estorninhos referi, en passant, as almenaras que o Condestável fez, em Palmela, para dar ânimo aos sitiados de Lisboa. Creio ser do conhecimento geral que almenaras eram fachos que se acendiam nos castelos para dar notícia de presença, para longe. Mas julgo que vale também a pena transcrever, da Crónica de D. João I, de Fernão Lopes, a parte em que as refere. Segue:

"...Nun'Álvares foi comer a Coina, e ali repartiu o esbulho per todos, sem havendo pera si parte alguma. E dhi cavalgou e foi a Palmela; e quando foi noite, mandou fazer tais almenaras de fogo, de guisa que o viam os de Lisboa, por saberem os da cidade que estava ele ali, e tomarem algum esforço.
E certamente assim foi de feito, que o Mestre, quando viu aquelas almenaras de fogo em Palmela bem entendeu que era Nun'Álvares que ali estava com suas gentes, e houve mui gram prazer, ele e todos aqueles que o viam; e mandou acender grandes tochas no grande eirado dos paços del-rei hu estonce pousava, por as verem de Palmela, e lhe dar a entender que via suas almenaras e que lhe respondia com aqueles lumes, pois outra fala antre eles haver não podia. E assim esteve o Mestre per um bom espaço falando com os seus nos feitos de Nun'Álvares com aquele doce razoar e louvores quais tão leal servidor merecia de se dele dizerem. Desi colheu-se pera sua câmara.
Nun'Álvares er apagou seus fogos por cobrar o sono que dante perdera; onde fique com boas noites. E nós tornemos ver a atribulada Lisboa, em que ponto está. ..."

Comic Relief (11) : Little Britain (babysitter)

Jacarandás, estorninhos e a O. C. D. E.


Timidamente, os jacarandás refloriram e os estorninhos regressaram à boa visibilidade lisboeta. Na Av. 24 de Julho, com atenção, já se podem descobrir no seu renascimento de memória biológica (vide Arpose, 15/6/2010, Dário Castro Alves) e genética brasileira, os cachos azúis e lilazes floridos, esparsos ainda, por entre a folhagem.
Vi também 4 ou 5 estorninhos, discretos, vindos de uma frondosa "ficus ficus", quase no Chiado, atravessar para o jardim da casa, que foi de nascimento, do Conde de Farrobo. Não eram ainda aquelas nuvens densas que se cruzam e recruzam, sobre o Tejo, ao fim do dia, entre Outubro e Novembro. Mas deu para perceber, além da temperatura, que Lisboa entrara no Outono.
Depois, no Telejornal, veio um senhor mexicano (de "paupérrimas feições"[ Guimarães Rosa]) da O. C. D. E., mas sem "sombrero", falar aos portugueses do "Inverno" que se aproxima rigoroso e inevitável, e como contrariá-lo: mais IVA, mais IMI, mais IMT... Raio de globalização, onde até os mexicanos nos vem dar receitas para viver!...
Olho para o semi-círculo de luzes que, no escuro e ao longe, demarcam o Tejo e a terra firme ribeirinha. O luar e o céu limpo deixam ver Palmela das almenaras do Condestável , para dar coragem a D. João I, cercado em Lisboa pelos espanhóis, e digo para mim mesmo: ao menos, deem-nos uma estação de cada vez! Senão, morremos todos embuchados.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Do "Diário" de Eugène Delacroix


"...Não gosto de pintura razoável; preciso que o meu espírito desmancha-prazeres se agite, desfaça, tente de mil maneiras, antes de chegar ao objectivo cuja procura me trabalha em cada coisa. ..."

Eugène Delacroix (1798-1863), in Diário (9 de Maio de 1824).

Adagiário XVII : pelo S. Miguel


1. Em 29, S. Miguel fecha as asas.
2. S. Miguel (29) e S. João passado, tanto manda o amo como o criado.
3. S. Miguel das uvas, tanto tardas e tão pouco maduras; se mais vezes vieras no ano, não estivera eu com amo.

Jogos Infantis 11 (e último) - Jogo da Glória

Para terminar esta secção de jogos infantis em GLÓRIA, deixamos para o final o jogo homónimo.
O jogo não tem grandes segredos, a não ser o facto de se reproduzir um exemplar dos finais dos anos 40, inícios dos anos 50 do século passado.
Dedicado a MR, por ser o último.
Post de HMJ

Filatelia IV : ( Inteiros ) Postais


Segundo o Catálogo de Inteiros Postais Portugueses (1985), de José da Cunha Lamas e A. H. de Oliveira Marques, o primeiro Bilhete Postal português iniciou a sua circulação em 1 de Janeiro de 1878, no reinado de D. Luís (1838-1889). Tinha a taxa de correio ou franquia de 15 réis (também foi emitido, em simultâneo, o postal de 25 réis), e a impressão em relevo de D. Luís, de perfil, igual à dos selos da época (fita direita). De acordo, ainda, com o catálogo acima referido, o postal de 15 réis teve uma tiragem de 737.152 exemplares.
O exemplar, ao alto, na imagem, pertence a esta tiragem e tem carimbo de Março de 1878, cerca de dois meses e poucos dias depois do início da circulação. A princípio, os postais eram apenas de produção oficial dos Correios de Portugal, mas, posteriormente, algumas empresas começaram a timbrar, com autorização, os seus próprios postais. O 3º postal da imagem é um bom exemplo. Já é circulado no reinado de D. Carlos como se pode ver pelo selo colado (emissão de 1892-1893, e primeira deste reinado).

domingo, 26 de setembro de 2010

Música e Poesia XXII : Alfred Cortot

É uma máscara ( e quem visita o Arpose sabe que não é pejorativo) de velhice, esta de Alfred Cortot - um dos grandes pianistas intérpretes de Chopin, de todos os tempos. É, também, um retrato de inteligência, sensibilidade humana e profissionalismo. Que o saibamos merecer!

Pré-anunciação da velhice - Eugénio de Andrade


É um poema raramente referido ou citado, este de Eugénio de Andrade (1923-2005), que abre o seu livro Obscuro Domínio (1972). Talvez por pequeninos preconceitos morais, vergonha pueril, puritanismo crítico. Ou, quem sabe, porque sempre lhe quiseram colar a classificação de poeta solar - que foi, também. Mas não só. As exsudações que a velhice produz, às vezes em excesso, ou por incontinência, estão aqui pré-anunciadas em tom rude e cru, agreste, impaciente - quase num exorcismo negro. É um poema a anunciar a velhice, mas não deixa de ser um grande poema.

O Ofício

Recomeço.
Não tenho outro ofício.

Entre o pólen subtil
e o bolor da palha,
recomeço.

Com a noite de perfil
a medir-me cada passo,

recomeço
no coração da pedra
a juntar palavras,

quero eu dizer:
baba ranho merda.

T. S. Eliot : a idade, nos poetas


Thomas Stearns Eliot nasceu nos Estados Unidos da América a 26/9/1888. Foi prémio Nobel de Literatura em 1948. Naturalizado inglês, morreu em Londres a 4 de Janeiro de 1965, convertido ao catolicismo, e monárquico. Além de poeta, foi um crítico e ensaísta de Literatura extremamente perspicaz e lúcido. A propósito de W. B. Yeats e sobre a influência da idade nos poetas, T. S. Eliot escreveu:

"...É difícil e precipitado generalizar sobre modos de composição - cada cabeça, seu modo - mas é experiência minha que, quando se aproxima da meia-idade, um homem tem três opções: deixar completamente de escrever, repetir-se talvez com crescente virtuosismo ou reflectindo, adaptar-se à meia-idade e descobrir um modo diferente de trabalhar. (...) Ora, em teoria, não há razão para que a inspiração ou os materiais de um poeta falhem, na meia-idade ou em qualquer altura antes da senilidade. Porque um homem que é capaz de experimentar descobre-se num mundo diferente em cada década da sua vida; como os vê com outros olhos, os materiais da sua arte renovam-se continuamente. Todavia, de facto muito poucos poetas têm mostrado esta capacidade de adaptação aos anos. ..."
T. S. Eliot, in Ensaios Escolhidos, Cotovia, 1992 (tradução de Maria Adelaide Ramos).

Civilidade (2) : vénias ou reverências


Já aqui abordamos (18/9/2010) questões de civilidade através do livro Elementos da Civilidade, e da Decencia, para Instrucção da Mocidade..., de autor anónimo, editado em Lisboa (1788), na Tipografia Rollandiana. Hoje iremos transcrever algumas palavras (pg. 8/9) sobre as reverências.

"...Há muitas pessoas, que por ignorância, ou negligência sua têm um ar tão desengraçado no modo de fazer uma reverência, ou cortesia, que não podem deixar por isso de motivar o riso, ou desgosto a qualquer pessoa, como por exemplo aquelas, que principiam a fazer uma reverência antes de tirarem o chapéu, ou a fazer uma e outra coisa ao mesmo tempo, tendo o chapéu diante da cara, como se se quisessem esconder, ou pondo-o diante de si, como quem pede uma esmola, o que é uma grande indecência, e incivilidade. O contrário disto sucede a um homem, que teve boa educação, quando intenta fazer a sua reverência, ou cortesia com graça; porque antes de fazer algum movimento com o corpo, ou cabeça tira o seu chapéu, estendendo o braço até ao joelho, e depois faz a sua cortesia mais, ou menos profunda, segundo a qualidade da pessoa a quem saúda. ..."

sábado, 25 de setembro de 2010

Favoritos XXXVII : Jean-Philipe Rameau

Jean-Philipe Rameau nasceu em 25 de Setembro de 1683.
P. S.: para MR, esta coreografia engenhosa.

Bibliofilia 30 : Almeida Garrett


O poema "Camões" em dez Cantos, de Almeida Garrett (1799-1854), foi publicado em Paris, sem o nome do autor, em 1825. No prefácio é dito que "sai acabado da imprensa, hoje 22 de Fevereiro de 1825". O exemplar na minha posse, e embora não tenha elementos rigorosos de informação, deve ter sido comprado no início dos anos 90 do século passado, em Lisboa. E, com certeza, não me terá custado mais de Esc. 10.000$00 (cca. 50,00 euros). Não é raro, mas também não aparece, muito, à venda.
Num leilão da Soares & Mendonça, em Outubro de 1989, foi vendido (lote 77) um exemplar completo, igual, por Esc. 8.000$oo (cca. 40,00 euros). Em 22 de Fevereiro de 2008, R. C. Ramer, no seu catálogo, vendia outro "Camões" (mas incompleto, com falta da página final da Errata) por USD. 1.500,00 (dólares). Como este Alfarrabista vende, sobretudo, para os E. U. da América, talvez sirva de atenuante esclarecedora a exorbitância do preço... Recentemente, recebi o Boletim Bibliográfico nº 46 (Setembro de 2010), da Livraria Luís Burnay que, no lote 256, propõe para venda um exemplar completo do "Camões", de Garrett, por 260,oo euros.
Nota muito posterior: em tempo, ontem (30 de Setembro de 2010), encontrei, num alfarrabista de Campo de Ourique, um exemplar igual, à venda por 35,00 euros, completo, embora com encadernação muito gasta. Donde se conclui que não se deve comprar por impulso. Sobretudo aos alfarrabistas que vendem para a América...

Em sequência, Rossini


Em sintonia com Memória 40, de Rossini (1792-1868), um pequeno excerto de "O Barbeiro de Sevilha".

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Memória 40 : os meus Barbeiros


Ninguém me poderá acusar de infidelidade excessiva em relação aos artífices que me cortaram o cabelo, ao longo da minha vida. Posso contá-los pelos dedos das mãos, e ainda me sobram dedos. O meu primeiro corte de cabelo foi feito em casa. No centro da cozinha: puseram-me uma enorme toalha branca, ao pescoço, por indicação do profissional de serviço, que viera de propósito a minha casa. A toalha cobria-me todo (excepto a cabeça), bem como ao banco vermelho em que me sentaram. E, debaixo do banco, ainda havia um estrado de madeira. Não é que o barbeiro fosse alto, muito pelo contrário, eu é que era muito pequeno, na época.
O artífice era um artista (tinha até um diploma profissional de Paris, testemunho de um prémio!), dono da Barbearia Sevilha, na rua de Camões, em Guimarães. Tinha sido um pioneiro do corte, dito, "à francesa" - com navalha (água antes, para amaciar o cabelo). O saudoso Fígaro dava pela alcunha difícil de "Omainholhelas" (= Ó mãe!, olhe elas!) porque, tendo sido sempre muito baixinho, em altura, na rua, quando brincava, as meninas e mulheres se metiam com ele, e o rapazinho gritava pela progenitora: "- Ó Mãe! olhe elas!" No Minho, ninguém escapa à caricatura ou irrisão.
A Barbearia Sevilha ainda lá existe mas, hoje em dia, quando por lá passo, de longe a muito longe, parece-me sombria, baça e cinzenta - irremediavelmente envelhecida. Na altura em que comecei a frequentá-la, sempre a achava brilhante, alegre e luzidia nos seus múltiplos espelhos biselados. Enquanto fui intermitente morador de Guimarães, sempre me mantive fiel cliente do Sr. "Omainholhelas". Nem mesmo no período em que estudava, em Coimbra, o deixei de ser.
Em Lisboa, na primeira fase, tive apenas dois barbeiros. O primeiro, na rua Luís Bívar, que morreu de enfarte; o segundo, que me cortava o cabelo numa rua paralela à Avenida E. U. da América. Mudei de trabalho e empresa, e tive que mudar de barbeiro - e vão 3!
Este quarto artífice era um bom profissional, já idoso, e exercia numa vila da Linha de Sintra. Era viúvo e, quando eu menos esperava, comunicou-me que se ia reformar. Fiquei consternado, mas desejei-lhe longa vida na aposentadoria. Fiz, depois, duas ou três tentativas desastrosas, na zona, de que me arrependi profundamente.
Até que, por volta de 2001 ou 2002, me fixei na Barbearia Celeste, na Baixa ( "- O Senhor engenheiro hoje não engraxa? // - Engraxo na Baixa.", A. O´Neill). É um local com decoração datada (1958), mas com pátina estética agradável. O interior foi restaurado pelo saudoso arquitecto Raul Ramalho, pai do meu amigo Pedro. A barbearia brilha ainda, no seu jogo múltiplo de espelhos, metais e linhas direitas. Inúmeros turistas param, deslumbrados, e tiram fotografias.
Sei quase tudo sobre o meu barbeiro actual, que é um óptimo profissional. É transmontano (de uma aldeia próxima de Chaves), Sagitário de signo astrológico, fez tropa em Timor, é casado e tem uma filha, já casada também. Mora num bairro popular de Lisboa e vem a pé para o emprego. Mas, ontem, soube mais uma coisa que me preocupou: tem a mesma idade que eu. Que a Natureza lhe dê tanta vida como a mim! É que eu não gostaria de ter que mudar, mais uma vez, de barbeiro, e sei como o meu cabelo é difícil de cortar. Além disso, o meu cabelo é forte e ainda relativamente denso. E não me parece que venha ficar careca, nos próximos tempos...

Música e Poesia XXI : Ruy Belo/Tim Hecker



Efeitos Secundários
É bom estarmos atentos ao rodar do tempo
O outono por exemplo tem recantos entre
dia e noite ao pé de certos troncos indecisos
cercados um por um de sombras envolventes
Rente às arvores vamos, humildes
Dizem que é outono. Mas que época do ano
toca nestas paredes que roçamos
como gente que vai à sua vida
e não avista o mar, afinal símbolo de quanto quer,
ó Deus, ó mais redonda boca para o nome das coisas
para o nome do homem ou o homem do homem? ...
(Ruy Belo, in Boca Bilingue, pg.44)

Nota: para eventuais dúvidas se confirma que a distorsão do som do piano é propositadamente provocada por Tim Hecker.
P. S.: obrigado, ms.

Citações XLV : Simone de Beauvoir


"... Mas é verdade que, de um modo geral, a velhice tem certas vantagens. Ser posto à margem da humanidade, é escapar aos constrangimentos, às alienações, que são o seu preço; a maior parte dos velhos não agarra esta oportunidade, mas ela está à mão de alguns, e uma parte aproveita. ..."

(Simone de Beauvoir, in La Veillesse, pg. 513)

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Duas culturas


Flash : os músicos romenos


Era para almoçar na Cervejaria da Trindade, mas como fui ao Rossio, para comprar o TLS, decidi-me a ficar por ali, e comer numa daquelas esplanadas das ruas que partem para o Terreiro do Paço. Má ideia, que tive. Se a matéria-prima (carne) era boa, a mais valia: nenhuma. Nem sabor, nem gosto. E o arroz, nem se fala...
Mas tive música, e com dois "encore".
A primeira orquestra tinha 4 elementos ciganos. No conjunto, dois homens, uma mulher a tocar pandeireta e um menor, ao acordeão - quase me senti em Paris... A segunda orquestra era mais comedida: só dois elementos. E era mais para a valsa vienense, à mistura com gritos bárbaros (ou bávaros dos Alpes?): quase fiquei eufórico!
Quando já eu estava a tomar o café, apareceu um solista romeno de bigode, com o seu acordeão. As músicas eram muito nostálgicas, e eu comecei a ficar melancólico demais para o meu gosto... Paguei a conta e afastei-me rapidamente do local. Ao chegar a casa, meti à boca, o último "Turkish Delight" que a A. N. oferecera, quando regressou da Ásia Menor. Ajudou-me a compensar a nostalgia e a encarar a vida mais desportivamente. Obrigado, A. N.!

Recomendado : Três - George Steiner


"É bem possível que a erudição mais elevada seja tão rara como a grande arte ou a grande poesia. Alguns dos dotes e qualidades que exige são óbvios: uma capacidade de concentração excepcional, uma memória poderosa mas minuciosamente precisa, finura e uma espécie de cepticismo piedoso a manejar a demonstração e as fontes, clareza na apresentação. ..."
(George Steiner, in "George Steiner em The New Yorker", pg. 271)

Eu gosto do vento. Acho que sempre gostei do vento, mesmo quando ele é agreste, como numa noite de Agosto, em Blankenberge que, de tão frio, me chegou aos ossos. Perdôo-lhe essa algidez tão intensa, que quase me pareceu mortal: precisa, certeira, no limite. Sem agasalho nenhum, nessa praia do Mar do Norte.
O pensamento de George Steiner (1929) é, também, preciso e certeiro no seu objectivo, mas não será final. Se E. M. Cioran, depois de Camus, foi meu guia (até por oposição) desde meados dos anos 60, Steiner continua a ser, felizmente ainda vivo, o meu mestre de ideias, de itinerário, de aviso, nesta viagem que se acaba com a morte. Porque transmite a sua lucidez de espírito que se vai reflectir no leitor, mas também essa alegria, juvenil ou madura (pouco importa) de viver. Aconselho, por isso, vivamente o livro "George Steiner em The New Yorker", da Gradiva, com excelente tradução de Miguel Serras Pereira e Joana Pedroso Correia, saído em Junho deste ano da graça de 2010.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Mercearias Finas 17 : Quinta da Lagoalva


Já era quase meio-dia, e sábado, em Setembro de 2001, creio. Perto de Alpiarça, a entrada e a casa da Quinta da Lagoalva são muito bonitas. No último troço do caminho, já dentro da quinta, somos acompanhados, ladeando, por oliveiras retorcidas centenárias que o avô do actual proprietário (Holstein) trouxe de Itália. Produzem, ainda hoje, um magnífico azeite que amacia, sapidamente, qualquer bacalhau da Noruega, cozido ou assado. E põe, também, redondas ôlhas como ilhas, na superfície de um fumegante caldo verde.
Quando chegamos ao armazém-adega, vimos que estavam a "arrumar" para o fim-de-semana. Havia uma caleche, ao fundo, desocupada, e sem cavalo. Holstein Campilho perguntou-nos ao que vinhamos, porque estava para se ir embora. Tinha acabado de receber e acompanhar um grupo da TV holandesa que viera fazer, à Quinta da Lagoalva, uma reportagem sobre a criação de cavalos lusitanos - disse-nos ele, orgulhoso. Eu ripostei que vinha à procura de um vinho que me recordasse o saudoso "FR" ribatejano, de memória gustativa inolvidável. Falamos de Alves de Sousa (Quinta das Caldas e Quinta da Gaivosa, durienses): contou-nos que eram grandes amigos. E de castas portuguesas. Eu confidenciei que não gostava nada dos monocastas da Trincadeira, e ele, contrapôs, cavalheiro. Até me quis oferecer uma garrafa, para eu mudar de ideias, mas não a tinha à mão, na altura. Deu-nos um Rosé de Lagoalva, a que eu chamei "vinho de varanda" - sorriu, gostou da alcunha, adoptou-a. Despedimo-nos de Holstein Campilho: Palmela, pela mãe, com raízes nortenhas, pelo pai. E lá trouxemos uns "Reserva", tintos.
O Rosé, dias mais tarde, viemos a bebê-lo, na varanda a leste. Era seco e bom. Deu para gostar, mas não para ficar convertido. Aos rosés, acho que nunca me converterei. E já tenho a minha conta de Mateus, na juventude.
Depois, na terra natal de Rodrigues Lapa (Anadia), vimo-nos aflitos para almoçar. Parecia uma vila abandonada, após um cataclismo. Nem se via vivalma a quem pudéssemos perguntar onde é que havia um restaurante aberto. Quase ao sair da vila, lá vimos uma moradia, num terreiro, com um letreiro a anunciar refeições. Subimos a um primeiro andar, que era mais de habitação do que sala de jantar, e mandamos vir um bife com batatas fritas e ovo. Bem feito, recordo.
No regresso a Lisboa, e nos primeiros quilómetros, a estrada secundária estava atapetada de tomates, a maior parte esborrachados. Passamos por imensos camiões carregados, que os iam levar à Fábrica. Andavam na apanha do tomate, mas muitos "morreram" na estrada. Podíamos ter recolhido alguns quilos, dos que ainda estavam inteiros. Os pneus do carro devem ter ficado vermelhos de tanta tomatada.

Leituras Antigas XVI : Colecção Vidas Célebres



A Colecção Vidas Célebres foi, para mim, juntamente com o Petit Larousse (de 1959), uma espécie de enciclopédia juvenil de frequente consulta. As biografias de homens e mulheres notáveis, por áreas culturais divididas, foram editadas pela Livros do Brasil, creio que ao longo dos anos 50. Custava cada volume Esc. 15$00. Os livros, pedagógicos, foram escritos por Henry Thomas e Dana Lee Thomas, traduzidos por brasileiros, com adaptação e revisão, para Portugal, de A. Vieira d'Areia. As capas, bonitas e impressivas, tinham autoria de Cândido Costa Pinto. Segue-se a relação dos doze volumes publicados:
1. Cientistas 2. Compositores 3. Filósofos 4. Pintores 5. Religiosos 6. Romancistas 7. Estadistas 8. Poetas 9. Mulheres 10. Estadistas Americanos 11. Homens 12. Americanos Famosos.

John Dowland - Galharda


terça-feira, 21 de setembro de 2010

Juvenília (9, post-scriptum)


Esquecemos tanta coisa,
até mesmo o tempo
das horas mais amargas.

Sozinhos
somos gotas pressentidas
num azul de estrelas apagadas.


1965-2010

Revivalismo Ligeiro XXVI : Pedro Infante

Como é que eu me pude esquecer do Pedro Infante (1917-1957)?... E também só agora me lembrei da Sarita Montiel!?

Como fazer um balão...


A pastilha elástica (chiclete) chegou à Europa com os soldados americanos, sobretudo durante e depois da II Grande Guerra Mundial. O seu uso difundiu-se rapidamente e começou, mesmo, a fabricar-se no Continente Europeu - como se pode ver no verso de um dos cromos que se mostram na imagem. Os pequenos cartões plastificados eram um brinde que acompanhava, no interior da embalagem, a pastilha elástica. Creio que custavam Esc. $50 ou 1$00. Estes cromos que acompanhavam os chicletes, devem ter pertencido às primeiras "fornadas" que chegaram a Portugal - e até ensinavam a fazer um balão!... A influência americana é notória: os artistas de cinema, fotografados e representados, são maioritariamente ianques.

Comic Relief (10) : Jô Soares (2)

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Salão de Recusados XXV : A Fénix Renascida (4, e último)


A uns olhos tortos

Travessos olhos, que na travessia
Deixais todos os olhos derrubados,
Contra quem só três dedos cavalgados
São na manhã remédio a todo o dia:
Dos milagres, que fez Santa Luzia,
Nenhum sabemos de olhos enfrestados
E mais olhos que são tão namorados,
Que olham um para o outro à mor porfia:
Ciosos olhos, pois, essas meninas
Escondeis no mais alto das capelas,
Não consintais haver delas suspeita:
Torcei-lhe a condição de pequeninas,
Porque nunca se possa dizer delas
Quem torto nasce, tarde se endireita.

António Barbosa Bacelar


Pragas se chorar mais por uma Dama cruel

Não sossegue eu mais, que um bonifrate,
De urina sobre mim se vase um pote,
As galas que eu vestir sejam picote,
Com sede me deem água em açafate.
Se jogar o xadrez, me deem mate,
E jogando às trezentas um capote,
Faltem-me consoantes para um mote,
E sem o ser me tenham por orate.
Os licores, que beba, sejam mornos,
Os manjares, que coma, sejam frios,
Não passe mais na rua, que a dos fornos.
E para minhas chagas faltem fios,
Na cabeça por plumas traga cornos,
Se meus olhos por ti mais forem rios.


Tomás de Noronha


Curiosidades 17 : 9.999 visitas


É a capicua total. O Arpose recebeu com gáudio, gratidão e alegria o 9.999º visitante. Veio do Brasil consultar um poste sobre "A Fénix Renascida". Oxalá tenha saído satisfeito.
Quero agradecer aos Amigos, de coração limpo e grato, aos conhecidos, e até aos desconhecidos que chegam em silêncio, e partem em silêncio - deixando um ténue vestígio da sua tímida passagem por este Blogue. E quero agradecer, sobretudo, àqueles que interagem. A apoiar ou a contraditar. ( Ou não fosse eu, Gémeos, de signo natal...)
O diálogo é sempre mais rico, mais humano, mais esclarecedor. Muito obrigado a todos os que vêm, em silêncio, ou com palavras.

J. P. Rameau

Saint-John Perse


"...Solidão! o ovo azul que um grande pássaro marinho põe, e as baías de manhã completamente atulhadas de limões de ouro! - Era ontem! O pássaro desapareceu!
Amanhã as festas, os clamores, as avenidas plantadas de árvores de vagens e os serviços de inspecção das limpezas arrancando à aurora grandes pedaços de palmas mortas, bocados de asas gigantes... Amanhã as festas,
as eleições de magistrados do porto, os vocalizos nos arrabaldes e sob as mornas incubações de tempestade,
a cidade amarela, coberta de sombra, com as suas calças das raparigas às janelas. ..."
(Saint-John Perse, in Anabase, tradução de Carlos Cunha e Alfredo Margarido)

Marie-René-Auguste-Alexis Saint-Leger Leger nasceu em Guadalupe, a 31 de Maio de 1887, e veio a falecer a 20 de Setembro de 1975, precisamente há 35 anos. Diplomata de profissão, poeta sob o nome de Saint-John Perse, foi prémio Nobel de Literatura, em 1960. No seu discurso de agradecimento referiu: "...Através do pensamento analógico e simbólico, pela iluminação longínqua da imagem matricial, e pelo jogo das suas correspondências, por entre cadeias de reacções e de estranhas associações, pela graça enfim duma linguagem onde se transmite o movimento próprio do Ser, o poeta foi investido de uma superrealidade que não pode ser igual à da ciência. ..."
Poesia de ampla respiração, por onde perpassa um sopro bíblico de ancestralidade e profecia, a obra de Saint-John Perse assimila, em si, a alacridade colorida dos Trópicos ao realismo racional da melhor tradição clássica europeia. Num movimento perpétuo encantatório que se cruza, tangencial, com a imaginação atenta do leitor. É um dos grandes poetas do séc. XX (Anabase, Éloges, Vents...) e, por isso, o lembro - hoje e aqui.

domingo, 19 de setembro de 2010

Anexo a "Os Fumos do Tempo..."


Anexa-se a lista de personagens correspondentes a figuras da vida real (duplamente) do romance "Marquêz da Bacalhôa". Esta relação encontrava-se no interior do livro, que comprei, usado, nos idos de 90. Pode ser que interesse a algum arqueólogo.

Os fumos do Tempo : best-sellers...


Os 2 livros cujas capas se mostram, em imagem, foram best-sellers, no tempo em que se publicaram (1903 e 1908). Um, porque tinha um perfume de escândalo, na época. Falo do "Marquêz da Bacalhôa", que foi reeditado há pouco tempo. A personagem principal era identificada, de uma forma geral, por leitores e colunistas sociais, como sendo o rei D. Carlos.
O segundo, "Ambrósio das Mercês", de Aníbal Soares, porque fora escrito por um jornalista muito conhecido - o equivalente, hoje, talvez, ao nosso simpático José Rodrigues dos Santos. O livro, creio, que não terá sido reeditado, recentemente.
Quem terá a pachorra "arqueológica" de os ler, hoje? Eu tive, penosamente, diga-se... Há uns anos atrás, mas já não me lembro de nada. A não ser do sacrifício da leitura.

Jogos Infantis 10 - Xadrez


Hoje, para além da imagem acima reproduzida, temos pouco a acrescentar. A antiguidade do jogo em si dispensa apresentações. Assim, também a Majora, pressupondo o conhecimento das regras do jogo, não adianta qualquer explicação na tampa da caixa.
Post de HMJ

Adagiário XVI : Para JAD, no Prosimetron, e com raposas


1. A raposa ama enganos, o lobo cordeiros e a mulher louvores.
2. A raposa faz pela semana com que ao domingo não vá à Igreja.
3. Raposa que muito tarda, caça aguarda.
4. A raposa muda de pele, mas não de manha.

P.S.:...até porque sobre a cabra "poética", não consegui encontrar nada, JAD. Em troca, vão estas raposinhas...

Para quem, ainda, estiver à beira-mar


"Na praia. Quase ao pôr do Sol. Baixa mar de marés vivas.
A água escorrida deixou os extensos planos da impoluta areia alisados, aplainados, dando uma impressão de virgindade melindrosa que mesmo os pés nus receiam trilhar.
A espaços, grandes quadros empapados, a rever água, onde se reflecte profundamente o céu. (...) A orla do mar estende-se pela praia com o deslizar soturno e quase empeçado de veludo; não vem laminada; espalha-se aqui e além, nos planos desiguais da areia que a sorve e se enfeita com os seus arabescos de espuma violeta. (...) O ténue crescente da Lua corta a linha do horizonte; uma apara de unha luminosa, um leve sulco de prata a esvair-se... Subo vagarosamente o caminho estreito e sinuoso que leva ao meu mirante... (...)Há em toda a natureza uma estranha dormência, um silêncio de prostração, uma lassidão, um temor... A absoluta mudez do mar, ali tão próximo, inquieta.
Entro em casa; abro a janela do meu quarto que deita para o jardim. Quase que se percebe a respiração das petúnias, morna e balsâmica. (...) A atonia universal sujeita-me a alma, adormenta-me, aniquila-me, dá-me a sideração completa. E assim ficaria eternamente.
Range no quintal a roldana do poço; ouve-se o claro som da água derramada do balde que chapinha; alguém diz a meia voz: A água turvou; que levante não fará amanhã..."
Manuel Teixeira Gomes (1860-1941) in Inventário de Junho.

Rachmaninov : Concerto nº 2 (início)

sábado, 18 de setembro de 2010

Civilidade (1) : em sequência


Desta vez não se trata de Bibliofilia, embora este volume, que encima o poste, talvez o merecesse. O autor destes "Elementos da Civilidade..." é anónimo. Mas se este livro se editou em 1788, por alguma razão foi. Ou porque correspondia a uma procura, ou para educar, ou para reformar. Talvez , com a ascensão de uma nova classe, houvesse necessidade de a munir de regras de urbanidade que não tinha, e ignorava. Segue um pequeno excerto do Discurso Preliminar:
"...Dissemos acima, que a civilidade é uma ciência, que ensina a pôr em seu legítimo lugar, o que temos de fazer ou dizer; e ora devemos dizer mais disso que esta ciência não poderia pôr-se em prática sem observar exactamente as quatro circunstâncias seguintes.
1. Reger-se cada um conforme a sua idade, e condição.
2. Reflectir na qualidade da pessoa, com quem se trata.
3. Atender ao tempo, e lugar onde nos achamos.
4. Saber distinguir, o que é civil, e conveniente, daquilo que não o é. ..."

Nota: actualizou-se a ortografia.

Quando a ignorância se torna atrevida ...

Sem pretender divagar sobre a evolução normal da língua que, frequentemente, é confundida com a ausência e/ou a falta de domínio de regras básicas, não resistimos e queremos denunciar o atrevimento implícito no folheto acima reproduzido.
Com efeito, o INE e a DGEG, como outras tantas entidades públicas com responsabilidades na defesa da língua, ignoram, certamente, as formas de tratamento em Português. Por isso, aconselha-se a consulta de um conhecido livrinho de Luís Lindley Cintra, Sobre "Formas de Tratamento" na Língua Portuguesa ou simplesmente a sua Nova Gramática do Português Contemporâneo, elaborado em colaboração com Celso Cunha.
Ao cidadão, ainda ciente das formas de tratamento em Português que respeitam a sua idade e condição social e que não aceita ser reduzido, impunemente, a essa categoria amorfa de "Você", assiste o "direito à indignação". Ao atrevimento da ordem implícita de "ponha/tenha" poderá sempre defender-se e não abrir a porta, evitando, assim, que semelhante "gente" lhe estraga a paz dos dias dentro das suas quatro paredes.
Post de HMJ

D. Francisco de Portugal e a Arte de Galantaria


Já aqui falamos (28/6/2010) de D. Francisco de Portugal (1585-1632) e da sua bem humorada Arte de Galantaria, publicada, postumamente, em 1670. No livro, são referidos 26 artigos, nos Estatutos ditos da Galantaria. Vamos transcrever o primeiro:
"Primeiramente ordenamos por proximidade e boa consciência que, vendo a cair-se uma Dama, possa o galã que estiver presente ao duro caso, oferecer-lhe um amortalhado em a capa, porque menos inconveniente é arrimar-se ela nele do que se quebrar um seu; e consegue também livrar-se de uma descompostura. Desta parece que só poderá sair-se bem fazendo como o outro que, cobrindo-a com a capa, deitou a fugir: sorte de touro e de Dama..."

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Bibliofilia 29 : Jorge de Sena



Não será raro este "O Indesejado (António, Rei)", de Jorge de Sena, peça de teatro com data de 1949, mas publicada em 1951, no Porto. Mas o facto de ter dedicatória manuscrita do Poeta, e endereçada, fá-lo único. Sei que o comprei em Lisboa, antes de 1989, por Esc. 1.200$00 (cca. 6,00 euros).
A tiragem foi de 500 exemplares.
Um pouco mais tarde, já nos anos 90, Mécia de Sena, sabendo que eu o tinha porque lhe dissera, pediu-me uma fotocópia da dedicatória, provavelmente, para anexar ao espólio de Jorge de Sena. Rapidamente cumpri o pedido, com o maior gosto.

Favoritos XXXVI : Abílio Manuel...



...Guerra Junqueiro, nascido a 17 de Setembro de 1850, foi, há muito tempo, com António Nobre, o meu primeiro (ex-aequo) poeta favorito. O único livro de Poesia da biblioteca (pequeníssima) de meu Pai era "Os Simples", 9ª edição, de 1924. Foi o nosso Victor Hugo, que até no funeral teve um acompanhamento numerosíssimo de gente anónima e de povo. Hoje, com alguma dificuldade, ainda lhe encontro alguns versos de um lirismo quase naif, tocante na sua simplicidade ingénua e, provavelmente, genuína:

...E a dos olhos garços pastorinha bela
Fia no seu fuso linho por corar;
É trigueiro o linho, trigueirinha é ela...
Rodopia o fuso...quando for donzela,
Já terá camisas para se ir casar!...

E esse fuso alegre onde se enrosca o linho
Já foi ramo verde n'esse tronco em brasas;
Deu já cachos brancos como o branco arminho,
Já sobre ele a ave construiu seu ninho,
Já sobre ele amando palpitaram asas!...

Fuso, como giras em dedinhos breves
Prasenteiramente, com tão louco ardor!
Que estarás fiando?...que enxovais?...que neves?...
Se serão camisas, ou mortalhas leves,
Cama para bodas, ou lençóis de dor!...


P.S.: para MR que, se bem me lembro, de quando em vez relê Junqueiro.

Música e Poesia XX : Louis Armstrong

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

O 28


Imagine-se que o avião vai, pelo azul escuro, em direcção à lua - é tudo uma questão de perspectiva, sobretudo, agora à noite, olhando o infinito...
Ou que a Bivyta, através de Gand, vinda de Rheinkassel, desemboca, adolescente, no Chiado, às 10 da noite. Tem dezassete anos e fica fascinada pelo eléctrico 28. Amanhã quer ir na "Montanha russa", que ainda desconhece na sua total e estreita aventura. Mal dorme. Desembarca em S. Vicente de Fora, cedíssimo, desliza até à Feira e, metodicamente alemã, compra uma pedra estranha de 2 quilos, para o Pai que é escultor; um colar de conchinhas para a Mãe e um vinil para ela mesma. Mais subtil, menos imediata, como tem humor acerado, marralha a compra de uma redoma de Nª. Srª. de Fátima, de plástico, para oferecer ao Klaus, o namorado. Daqueles ícones que, agitados, projectam flocos de neve sobre a imagem sagrada. O que se irão rir na Universidade, pensa Bivyta. Volta feliz, no 28, para o Chiado: só gastou 14 euros.
Quando regressa, os Pais vão-na buscar a Bruxelas. Chove. Mas Bivyta nem repara. Quando abraça Ruth, regressada, filial e pequenina no seu metro e oitenta e cinco, diz para a Mãe: "- Portugal ist wunderbar!", e quase chora de alegria.

Filatelia III : D. Pedro V


D. Pedro V nasceu a 16 de Setembro de 1837. Reinou de Setembro de 1855 até Novembro de 1861. Achei, por isso, ajustado reproduzir alguns dos selos que circularam no seu curto reinado.
Na primeira fila, ao alto, mostram-se duas reimpressões de 1885. Na fila central, um selo falso de 50 réis, com as explicações em alemão.

Victor Jara

Victor Jara, cantor chileno de intervenção, foi assassinado em 16 de Setembro de 1973, pouco depois do golpe de estado em que morreu Allende, e que levou Pinochet ao poder.

Claudio Magris sobre E. M. Cioran


De Claudio Magris (1939) tenho vindo a ler, parcimoniosamente, "Danúbio". Como "Le Premier Homme" de Albert Camus, também. Para que não acabem muito depressa. Como, às vezes, faço com um resto de "after-shave", uma aguardente velha, uma água de colónia que sei que já não poderei comprar mais nenhuma. Porque deixaram de se fabricar e porque gosto ou gostei demasiado deles, para os deixar acabar...
Magris fala, em "Danúbio", das diversas regiões e países que o rio atravessa. Desde a nascente até à foz, no Mar Negro. Descreve paisagens, conta lendas e histórias reais, refere etnias, filósofos, escritores. Da Roménia cita um provérbio nacional que, para Magris, define, de algum modo, os romenos: "Uma cabeça vergada, não é cortada." Quando por lá passou, nos anos 80, Ceausescu governava em ditadura. Ao falar de Bucareste, o escritor italiano refere, também, E. M. Cioran. Não é nada simpático, para com ele. Diz o seguinte, na página 345:
"... Cioran, com a sua desilusão total e exibida, nasceu destas funduras vegetais do universo romeno, embora não em Bucareste, ou, como ele escreve, de mistura de frescura e podridão, de sol e de esterco do país. Mas o riso radical troça não só da fé na ordem e nos valores, mas também da certeza do caos e do nada, e Cioran, ofuscado pela decomposição nostálgica, é incapaz de autêntico cepticismo ou de humor. Rasgando um véu após outro de todas as filosofias e ideologias, Cioran tem a ilusão de ver passar diante de si, no palco da história universal chegada ao seu termo, o bazar das fés em liquidação, sem dar conta de que também ele desfila no meio do cortejo universal. Parasita do mal-estar, refugia-se na negação absoluta, chafurdando confortavelmente entre as contradições da existência e da cultura e ostentando o seu delírio, em vez de procurar compreender a muito mais difícil mescla de bem e de mal, de verdadeiro e de falso que cada dia traz consigo. (...) Cioran é um filho genial deste mercado, mas um filho que pôs a cabeça a salvo e se afastou para longe, para o interior da sua mansarda parisiense, desta humilde e festiva miséria humana. ..."

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

"Oito luas fatais fitam o espaço"


O título deste poste tirei-o de um poema que Fernando Pessoa dedicou a António Duarte Gomes Leal (1848-1921), também ele poeta, e a quem, no amplo sentido "verlaineano" do termo, poderíamos apelidar de "maldito". Na idade adulta, vivendo de expedientes ou da colaboração em jornais republicanos, mas também do património que o Pai - morto jovem - deixara, e que sua Mãe, parcimoniosamente, moeda a moeda lhe ia dando, após a morte dela, em pouco tempo, delapidou o que sobrara. Os restantes 11 anos, viveu-os Gomes Leal em decadência gradual até à sua morte, em casa do amigo Ladislau Batalha, na Rua do Telhal. Vagabundeou muito, antes. Pode dizer-se que foi um sem-abrigo, "avant la lettre", e muitas vezes, sem dinheiro para pagar um quarto, adormecia nos bancos do Rossio ou da Avenida da Liberdade. Mas assim como esbanjou dinheiro, também esbanjou talento. Dos seus versos se sente o eco em Cesário e Nobre, e um pouco menos em Pascoaes.
Era consensualmente admirado como poeta. Quando já quase indigente, a República, pelo seu Parlamento, votou-lhe uma tença, no melhor exemplo camoniano - pagavam-na tarde e a más horas... E Aníbal Soares, monárquico convicto, também lhe arranjou um subsídio, provavelmente, do seu próprio bolso. Dele, na literatura e antigas selectas, ficou memória do poema "A Duquesa de Brabante" que Gomes Leal dedicou a Alberto Osório de Castro. Opto pelo soneto "Fantasias" onde se notam "raízes" do que, depois, Cesário Verde viria a fazer com outra elegância e geometria...

Tenho, às vezes, desejos delirantes
De a todos te roubar, meu lírio amado!...
E levar-te, em um vôo arrebatado,
Aos países fantásticos, distantes.

À Índia, China ou Irão, e os meus instantes
Passá-los a teus pés, grave e encruzado,
Num tapete chinês aveludado,
Com flores ideais e extravagantes.

Nossa vida seria - ó pomba minha! -
Mais leve do que a asa da andorinha,
E, nas horas calmosas, eu e tu...

Olhando o mar sereno, o mar unido,
Comeríamos os dois arroz cozido...
- Embalados num junco de bambu!

Revivalismo Ligeiro XXV : Demis Roussos

Homo homini lupus (Homem lobo do homem)


Cruzam-se notícias. Entre o "injusto, indecente, desproporcionado (modelo económico)..." referido pelo prateado e fleumático bispo Carlos Azevedo, pressionado pela quase rotura financeira de delegações de apoio social, orientadas pela Igreja; e entre os "925 milhões de famintos no mundo", número divulgado pela FAO; mas ainda, e por outro lado: (em Portugal) "em 2009 se ter atingido um novo recorde de aberturas de centros comerciais..."
Quando saí, esta manhã, deparei com uma velha mulher andrajosa a vasculhar com um pau o contentor do lixo. Como em Dezembro de 2005, desembarcado cerca da meia-noite, entre a Av. da República e a Av. E. U. da América, dei de caras com um grupo de 4 ou 5 emigrantes em volta dos contentores de um supermercado.
Um sexto faminto (?) aproximou-se, pé ante pé, lentamente. O grupo do leste, quando o viu, já próximo, correu-o à paulada...

Memória 39 : Francisco de Quevedo y Villegas


Enseña a morir antes y que la mayor parte de la muerte es la vida, y esta no se siente, y la menor, que es el
último suspiro, es la que da pena

Senhor dom Juan, pois que com febre apenas
se nos aquece o sangue desmaiado
e pela muita idade enfraquecido
treme, já não pulsa, entre artéria e veias;

porque de neve estão os cumes cheios
a boca pelos anos saqueada,
doente a vista, em noite sepultada,
e as forças de exercício tão alheias;

saí a receber a sepultura
afagai a campa e o monumento,
que morrer vivo é o mais sensato.

A maior parte já da morte sinto
que se passa em risos e loucura
e da menor se guarda o sentimento.


Nota: Quevedo nasceu a 14 de Setembro de 1580.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Steffano Landi (1587-1639)

Citações XLIV : Tácito




"A distância aumenta o prestígio."
(Major e longinquo reverentia)

Tácito (50-120), in Anais I.